1.2.07

ARTIGO: Paradoxo iluminista, a situação das mulheres no século das Luzes.

Por Liana Machado

O século XVIII é marcado pela transformação do pensamento humano. Numa época chamada conscientemente de Iluminismo, torna–se comum o pensamento liberal ordenado pela razão. A filosofia, a arte e principalmente a política terão suas bases, pouco a pouco, desconstruídas e novamente construídas de acordo com esta nova ideologia de pensamento. Época em que o homem despede-se do pensamento religioso e da explicação pela fé e começa a tomar conhecimento de si e de suas ações. Trazido para a imanência, o homem se vê responsável pelas rédeas do mundo. Clama-se pela individualidade, pela igualdade e acima de tudo pela razão e conhecimento humanos.

A partir do iluminismo passou-se a pensar o mundo de uma forma diferente. A razão imperava e as explicações agora seriam cientificamente comprovadas. Dentro dessa nova reflexão o papel das mulheres na sociedade também foi revisto, de uma maneira geral não havia como ignorar o assunto, já que as mulheres também pertenciam à sociedade. A situação das mulheres seria pensada também dentro deste campo cientifico, e muitos foram os filósofos iluministas que falariam sobre o papel das mulheres dentro da sociedade. E para esses filósofos qual seria este papel? Estariam elas – as mulheres – inseridas dentro da nova ideologia de liberdade, e igualdade? Seriam responsáveis também pelos acontecimentos humanos ou seriam apenas coadjuvantes do processo histórico?

A situação das mulheres refletia as contradições e paradoxos da ideologia ilustrada. De um lado, o ideário liberal e ilustrado acenava para a igualdade entre os sexos e para o necessário correlato social com deveres e direitos. De outro, esse mesmo ideário tinha como elemento central a separação entre o público e o privado, definindo o público, como de âmbito masculino e o privado como da esfera feminina. Tal situação provocou o embate entre igualdade entre os indivíduos e a conseqüente igualdade entre os sexos e a separação entre o publico e o privado.
Dentro desse paradoxo, havia pensadores avessos a uma eventual liberação feminina, assim como também aqueles repensavam a submissão das mulheres.

Rosseau, em Emilio ou da educação, dedica às mulheres apenas o último capítulo e de fato estas só aparecem quando Emilio está em idade de casar. Em busca da mulher perfeita para Emilio, Rousseau nos fornece logo nas primeiras páginas qual será o papel da mulher ideal: “A mulher é feita especialmente para agradar ao homem”. Para Rousseau as atividades das mulheres deveriam se restringir a esfera privada e para bem exercê-las deveriam ser educadas diferentemente dos homens, enquanto aos meninos eram ensinadas atividades que desenvolviam o intelecto e treinados para assumir as responsabilidades de bons cidadãos na esfera pública, as meninas deveriam ser educadas para cuidar dos filhos e da casa, manter a paz dentro do reduto familiar, para que os homens pudessem melhor exercer sua cidadania. Diferencia então o papel entre os sexos e nega a Razão às mulheres. Impossível seria não reconhecer contradições no pensamento rousseauniano; por que então seria a favor da sujeição feminina alguém que tanto lutou pela igualdade e liberdade entre os homens?

Muitos serão os pensadores do século XVIII que não tolerariam uma eventual independência feminina. Escritores como Molière, que escreve As Sabichonas, satirizando mulheres que tentavam se desvencilhar de seu inevitável futuro: o casamento. Em Espírito das Leis, de Montesquieu, há algo de muito interessante em sua reflexão sobre as mulheres; no capítulo da administração das mulheres, o autor considera contrario à razão e à natureza que uma mulher governe uma casa, porém não o é que governem um império, pois se é fraca para a administração da primeira é justamente esta fraqueza que “da-lhes maior doçura e moderação o que pode propiciar um bom governo”. Diderot, apesar de ter escrito romances que prestigiavam as mulheres, acaba por encerrá-las num espectro de sensibilidade e imaginação.

Mas nem só de inimigos viviam as mulheres do século das Luzes. Descartes, mais de meio século antes ao período ilustrado, ao afirmar autonomia do pensamento em relação ao corpo torna possível a igualdade intelectual entre os sexos. Voltaire, tido como grande defensor das mulheres, dirá que “Somos de um tempo (...) em que é preciso que o poeta seja filósofo e em que a mulher pode sê-lo ousadamente”.

A discussão abrangia diversos pontos do universo feminino. Eram dotadas, as mulheres, da capacidade de pensamento? Poderiam chegar à Razão? Se sim, como poderiam ser educadas para que isso acontecesse? Caso contrario, como deveriam ser educadas para que isso não acontecesse? Educar meninas como meninos seria torná-las homens e fazer com que perdessem suas qualidades femininas, não sendo, portanto, nem homem nem mulher? Diversas são as respostas dadas por estes pensadores do século XVIII. Respostas essas que precisam ainda de muita pesquisa e análise, mas discussões à parte, há de se lembrar que muitas mulheres deste mesmo século puderam romper com a sociedade e se tornarem pessoas influentes. Citarei duas em especial que foram analisada no livro Émilie, Émilie - A Ambição Feminina no Século 18, de Elisabeth Badinter; Madame du Châtelet, que viveria ao lado de Voltaire no castelo de Cirey, traduz Principia Mathematica, de Newton. Cientista brilhante esta Èmilie não ficou abaixo dos pesquisadores da época, se colocando, intelectualmente, em pé de igualdade com todos eles. Voltaire pode ter sido muito influenciado por Madame du Châtelet, ao acreditar na igualdade mental entre os sexos. A outra Èmilie, Louise d'Épinay, embora não tenha tido a erudição de Madame du Châtelet, recepciona em seu salão os maiores pensadores da época e escreve diversos livros sobre educação infantil. Muitas são as mulheres influentes neste século de mudanças, Mulheres que clamavam por liberdade e que ousavam “intrometer-se” no universo masculino. Participaram da revolução francesa, sendo uma delas Charlotte de Corday, responsável por uma guinada nos acontecimentos da revolução ao assassinar Jean-Paul Marat. Há ainda muito que se pesquisar as mulheres que, mesmo com toda a severidade de uma sociedade estabelecida nos direitos masculinos e na sujeição feminina, conseguiram sobrepujar sua condição de inferioridade e tornarem-se personagens ativos da História.

VALE A PENA LER:

Sempre que falamos em educação feminina no século XVIII esbarramos em Rousseau. Talvez por sua clara contradição entre a igualdade entre os homens e a igualdade entre os sexos. Sua obra Emilio ou da educação, influenciou muito as gerações futuras sobre a maneira como deveriam ser educadas as meninas. Citada acima, fica clara a posição de Rousseau com relação ao papel da mulher. Surge então no final século XVIII uma obra que dialogará diretamente com o texto de Rousseau; trata-se de A Vindication of the Rights of Woman (Em defesa dos direitos da Mulher) de Mary Wollstonecraft. Mary foi considerada por muitos a mãe do feminismo, embora seja um conceito um tanto difícil de se aplicar já que o feminismo ainda não existia como movimento. Criada com muitas dificuldades financeiras e educação um tanto precária, Wollstonecraft viria a se tornar uma brilhante mulher do século Iluminista. Entre outros escritos, talvez seja mesmo em Vindication que ela será imortalizada. Refutando diretamente os argumentos de Emilio, faz uma análise sobre a educação feminina colocando como empecilho às perspectivas da mulheres o fato de que as meninas eram criadas para serem frívolas e que isso barrava o processo de desenvolvimento intelectual e que portanto não seriam as mulheres naturalmente inferiores, mas que eram apenas criadas, com ou sem o seu consentimento, para o serem.

Ivania Pocinho Motta, faz a tradução de Vindication assim como produz uma brilhante análise da vida e da obra de Mary Wollstonecraft, mulher de vida e produção literária intensos, mesmo que o século das luzes tenha sido, particulamente para as mulheres, não tão iluminado assim.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie: A Ambição Feminina no Século 18.
MOLIÈRE, Jean-Baptiste P. As Sabichonas.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis.
MOTTA, Ivania Pocinho. Em defesa dos direitos da mulher, de Mary.

WOLLSTONECRAFT. Um estudo.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emilio ou da Educação.